Em outubro do ano passado, revisei as três peças que iriam compor o livro Trilogia Canalha, lançado em dezembro de 2008. Comecei pela primeira que escrevi, O Crápula Redimido, que encenamos em 2003 e amparado pelos anos de estrada, me permiti a sensíveis ajustes no texto, incorporando novos diálogos e cortando aquilo que me parecia desnecessário para a narrativa. De quebra, mudei o final e terminei o trabalho pensando que seria ótimo ver o Crápula em cena novamente pra testar com o público o resultado dessas modificações. Estava estabelecido o ponto de partida que fomentou a idéia desse repertório: a possibilidade de revisitar a minha dramaturgia e a produção da Cia dos Gansos à luz da nossa maturidade acumulada.
Além disso, temos um fato emblemático: a Cia dos Gansos comemora dez anos em 2009, ainda fiel ao espírito que fomentou a sua fundação: a reunião de um grupo seleto de amigos que, em comum, possuem a mesma paixão pelo teatro e as mesma vontade de dar o seu testemunho indignado frente às imposições que assolam o homem na sociedade atual. Foram cinco montagens, dez temporadas em cartaz, dezenas de festivais e centenas de quilômetros percorridos em vans desconfortáveis, pra se apresentar ora em teatros magníficos, ora em galpões improvisados, sempre com a mesma raça e amor pelo ofício. Era preciso, enfim, realizar esse repertório, pelo grupo e pelo dramaturgo.
São três peças unidas pelo aspecto temático (a canalhice, suas causas e conseqüências), mas bastante distintas no aspecto formal: uma epopéia trágica que revela a saga de um anti-herói isento de escrúpulos (O Crápula Redimido), uma triste comédia de apartamento, com toques absurdos e alegóricos (Escombros) e uma tragicomédia ácida e desesperançada sobre a falência ética do mundo corporativo tendo como pano de fundo os bastidores de uma emissora decadente de televisão (O Rei dos Urubus). Textos que revelam de maneira escancarada a maior parte das minhas influências: Guarnieri, Nelson, Ibsen, Dias Gomes, Joe Orton, Durrenmatt, Vianinha. Autores cujos textos encenei como ator ou diretor em algum momento da minha vida e que me impregnaram daquilo que eu considero essencial no teatro: o estabelecimento de uma comunhão efetiva com a platéia na busca por uma obra que fomente a reflexão sobre a realidade dos nossos dias.
A Cia dos Gansos permitiu o aprimoramento dessa minha trajetória ainda recente como autor. Ver encenados os textos que nasceram na solidão do meu escritório representou a possibilidade de avaliação do que funciona e do que não funciona em cena, além de consolidar aquilo que acredito ser parte do meu caminho dentro do teatro. Sempre tentei ser o mais honesto possível na abordagem de temas que me afligem como cidadão e artista, extravasando minhas inquietações através do humor, o que nem sempre foi fácil. Escrevo minhas peças pensando também no prazer do intérprete diante do contato com um personagem consistente e envolvido em situações que, eu acredito, possuem alta teatralidade. Foi pensando especificamente na interpretação e no pensamento de alguns atores da Cia que determinados personagens foram construídos. Além disso, minhas conversas com a Eliana Fonseca, Glaucia Libertini, Frederico Foroni e Marcelo Lazzaratto fora fundamentais para a lapidação dessa obra. Enfim, como não agradecer imensamente aos atores, diretores, iluminadores e técnicos que, a cada espetáculo, compraram comigo essa briga cada vez mais hercúlea que é fazer o teatro que a gente acredita?
Fecha-se um ciclo na minha vida, abre-se outro pelos próximos dez anos. O pouporri de lembranças, diálogos e experiências certamente fomentará novos desafios pra mim e pra esse punhado de artistas que emprestaram seus talentos nesse exercício de resgate da nossa história. Estou felicíssimo por compartilhar com o público o repertório que revela o que fizemos no passado, enquanto planejamos com otimismo um futuro que vai ser o que a gente quiser.
Leonardo Cortez
- texto escrito em 2009 para o programa da Trilogia Canalha
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